POR QUE A IA EXIGE UMA NOVA GERAÇÃO DE LÍDERES: ALÉM DA TECNOLOGIA, UMA REVOLUÇÃO HUMANA

A inteligência artificial (IA) deixou de ser um tema restrito aos departamentos de tecnologia e se consolidou como um vetor estratégico que redefine os fundamentos da gestão, da cultura organizacional e da própria liderança. À medida que avançamos para um cenário empresarial crescentemente mediado por algoritmos, surge uma pergunta inevitável: estamos preparados para liderar com – e não apenas sobre – a inteligência artificial?

 

A resposta, como evidencia o artigo “Why AI Demands a New Breed of Leaders”, publicado pelo MIT Sloan Management Review, é que a maioria das organizações ainda está aquém dessa preparação. Não por falta de investimento ou inovação tecnológica, mas por uma lacuna crítica: a ausência de líderes capazes de operar de forma sinérgica entre tecnologia, ética e humanização. A IA exige uma nova forma de pensar o poder, o planejamento e as relações de trabalho – e, sobretudo, um novo tipo de líder.

Mais do que algoritmos: a revolução é cultural

O equívoco mais comum nas estratégias de adoção da IA reside na crença de que trata-se apenas de uma transição tecnológica. A realidade, no entanto, é muito mais complexa. Como apontam especialistas como Thomas Davenport e Erik Brynjolfsson, o sucesso de qualquer tecnologia disruptiva está diretamente ligado ao grau de transformação cultural que ela é capaz de promover (Davenport & Miller, 2022). A IA não é exceção. Pelo contrário: ao introduzir novas formas de decisão, automação e análise preditiva, ela desafia a lógica organizacional tradicional.

 

A IA, por sua própria natureza, desafia a lógica tradicional de comando e controle. Ela exige novos modelos mentais, mais colaborativos, iterativos e baseados em experimentação. Implica abrir mão do controle absoluto em nome de uma coevolução entre humanos e máquinas. Não se trata, portanto, apenas de integrar algoritmos às operações, mas de reconfigurar a cultura organizacional para operar em ambientes marcados por ambiguidade, velocidade e complexidade.

 

O caso da Zillow é um exemplo emblemático dos riscos de se negligenciar esse aspecto cultural. A empresa, uma das maiores plataformas de compra e venda de imóveis dos Estados Unidos, decidiu, em 2018, apostar pesadamente em uma estratégia de iBuying — um modelo em que algoritmos preditivos analisam dados do mercado imobiliário e realizam ofertas automatizadas para comprar imóveis diretamente dos proprietários, revendendo-os com lucro. A promessa era sedutora: escalar transações com base na inteligência artificial, dispensando intermediários e acelerando processos. No entanto, em 2021, a Zillow anunciou o encerramento abrupto de sua divisão Zillow Offers, com prejuízo acumulado de mais de 300 milhões de dólares apenas no terceiro trimestre daquele ano.

 

O que deu errado? Segundo apurações do Wall Street Journal e análises técnicas posteriores, o modelo preditivo da Zillow superestimou os valores de revenda de milhares de propriedades, adquirindo ativos com preços inflacionados. Mas o erro não foi apenas técnico — foi cultural e estrutural. A empresa falhou ao não construir salvaguardas humanas e processos robustos de validação e supervisão sobre os algoritmos. Em vez de criar um ambiente onde a tecnologia fosse testada, refinada e integrada com a inteligência humana, confiou cegamente nos outputs do modelo. Como afirmou Rich Barton, CEO da empresa, à época: “A dificuldade em prever preços futuros com precisão em toda a gama de imóveis nos levou a essa decisão”. Em tradução livre: os algoritmos não deram conta da complexidade do mundo real.

 

Esse episódio é um sinal de alerta para qualquer organização que pretenda escalar soluções de IA sem repensar seus princípios culturais. Ele evidencia a necessidade de líderes capazes de combinar visão tecnológica com discernimento humano, capazes de manter a criticidade mesmo diante da promessa de automação inteligente.

O líder como tradutor de futuros incertos

Em um cenário cada vez mais mediado por inteligência artificial, dados massivos e processos automatizados, a liderança eficaz deixa de ser uma questão de domínio técnico para se tornar uma habilidade profundamente interpretativa. Como defende Karl Weick, pioneiro nos estudos de comportamento organizacional, o papel do líder contemporâneo está diretamente relacionado ao sensemaking — a capacidade de construir significado diante do caos, transformar incertezas em narrativas compreensíveis e, assim, orientar a ação coletiva em ambientes ambíguos e imprevisíveis (Weick, 1995).

 

Nesse novo paradigma, o líder não é mais apenas um gestor de recursos, mas sim um intérprete de realidades emergentes. Um “tradutor” que articula diferentes linguagens — a técnica, a ética, a emocional e a estratégica — para gerar alinhamento e mobilização. Essa competência torna-se particularmente vital num ambiente onde decisões são cada vez mais descentralizadas, frequentemente compartilhadas com sistemas autônomos, e onde os ciclos de inovação ocorrem em ritmo exponencial. Em outras palavras, o líder contemporâneo deve ser menos gestor de recursos e mais intérprete de realidades emergentes.

 

A metáfora do “tradutor de futuros” se torna ainda mais relevante quando observamos que os líderes do século XXI precisam operar em uma zona de interseção entre o conhecido e o desconhecido, o humano e o algorítmico, o analítico e o intuitivo. As lideranças mais eficazes são aquelas que conseguem equilibrar pensamento crítico com adaptabilidade emocional, articulando múltiplas perspectivas para lidar com paradoxos que não oferecem soluções óbvias.

 

De fato, a liderança em tempos de IA não pode se contentar com certezas. Ela exige conforto com a ambiguidade, capacidade de projetar cenários múltiplos e abertura para o aprendizado coletivo.

As quatro virtudes do líder IA-centrado

À medida que organizações integram algoritmos em seus processos decisórios, surgem implicações que transcendem a esfera operacional e tocam em aspectos éticos, culturais e humanos. O artigo do MIT Sloan Management Review propõe um modelo de liderança centrado na IA estruturado em quatro pilares fundamentais. Estes pilares não são apenas competências desejáveis; são condições estruturantes para que a IA produza valor de forma legítima, inclusiva e sustentável.

1. Intencionalidade Estratégica

Em um cenário no qual a tecnologia é facilmente acessível, o diferencial competitivo deixa de estar no acesso à IA e passa a residir na clareza sobre como ela contribui para os objetivos organizacionais. Implementar IA sem uma visão estratégica clara é como confiar um navio a um sofisticado sistema de navegação, sem saber o destino final.

 

A intencionalidade estratégica, nesse contexto, implica vincular projetos de IA a metas de longo prazo, alinhando-os não apenas a resultados financeiros, mas também a objetivos de impacto social, diversidade, inclusão e sustentabilidade. A Microsoft, por exemplo, tem articulado sua estratégia de IA ao compromisso de se tornar carbon negative até 2030, ao mesmo tempo em que posiciona algoritmos como ferramentas para acessibilidade e inclusão. A IA torna-se, assim, uma ponte entre ambição empresarial e responsabilidade social.

 

Como afirma Rita McGrath, da Columbia Business School, em ambientes de mudança acelerada, a vantagem competitiva é substituída pela vigilância estratégica contínua – e é exatamente isso que a IA, quando bem orientada, pode proporcionar (McGrath, 2019).

2. Ética Aplicada e Transparente

A inteligência artificial não é neutra. Por trás de cada decisão algorítmica, há escolhas humanas embutidas: sobre quais dados treinar, que variáveis considerar, que vieses mitigar ou ignorar. Por isso, a ética em IA precisa sair das páginas de relatórios de responsabilidade corporativa e ocupar um lugar central no design, na operação e na governança da tecnologia.

 

A governança algorítmica deve ser preventiva, inclusiva e audível. Iniciativas como a Partnership on AI e o movimento AI for Good vêm demonstrando que é possível construir frameworks colaborativos que unam empresas, governos e sociedade civil em torno de princípios como justiça, explicabilidade, não-discriminação e accountability.

3. Cultura de Aprendizagem e Adaptação

Em ecossistemas tecnológicos que evoluem de forma não linear, a adaptabilidade torna-se um ativo estratégico. Organizações que prosperam com IA são aquelas que aprendem mais rápido que a taxa de mudança ao seu redor. Isso exige uma cultura onde a experimentação é incentivada, o erro é interpretado como fonte de aprendizado e os ciclos de iteração são curtos e contínuos.

 

Essa postura organizacional, baseada em agilidade e humildade, ecoa os princípios do fail fast, learn faster, mas com responsabilidade. A Amazon, por exemplo, mantém times dedicados à experimentação com IA que operam com total autonomia para testar hipóteses e, quando necessário, descontinuar projetos rapidamente – transformando “fracassos” em dados valiosos para futuras decisões.

4. Integração Centrada no Ser Humano

Talvez o princípio mais decisivo – e menos discutido – da liderança IA-centrada seja o da centralidade humana. A IA deve ser concebida não como substituta da inteligência humana, mas como sua parceira: uma ferramenta que amplia a criatividade, a empatia, a análise crítica e a capacidade de julgamento contextual.

 

O exemplo da Mayo Clinic é particularmente ilustrativo: sistemas de IA são utilizados para auxiliar médicos no diagnóstico de doenças raras, processando bilhões de dados genéticos em segundos. No entanto, a decisão final continua nas mãos do médico – cuja sensibilidade, experiência e ética são insubstituíveis. Aqui, a tecnologia atua como “copiloto cognitivo”, não como comandante.

 

Essa perspectiva dialoga com o conceito de IA relacional, proposto por Sherry Turkle (MIT), segundo o qual a tecnologia deve ser desenhada para fortalecer vínculos humanos, não diluí-los. Mais recentemente, organizações como o UNESCO e o Fórum Econômico Mundial têm defendido a urgência de modelos de IA “human-in-the-loop”, onde o julgamento humano é mantido como fator decisivo em processos sensíveis.

Implicações práticas e caminhos possíveis

Adotar essa nova mentalidade requer mudanças concretas na estrutura organizacional e nos processos de desenvolvimento executivo. Algumas medidas emergem como indispensáveis:

 

  • Criação de papéis híbridos: Cargos como Chief Human-Machine Officer ou Head of Digital Ethics tornam-se essenciais para orquestrar as complexas interfaces entre IA, cultura e negócio.

     

 

  • Educação corporativa expandida: As academias de liderança precisam incorporar temas como pensamento crítico sobre IA, metodologias de sensemaking e estratégias para condução de conversas difíceis em contextos ambíguos.

     

 

  • Revisão das métricas de sucesso: Além dos tradicionais KPIs financeiros, é fundamental mensurar a aceitação da IA pelos colaboradores, a velocidade de adoção e o impacto na experiência de trabalho.

     

 

  • Fomento à colaboração interdisciplinar: A criação de comunidades de prática internas – reunindo cientistas de dados, gestores, RH e compliance – favorece a inovação responsável e a cocriação de soluções.

 

Conclusão: liderar é imaginar o futuro e torná-lo possível

Liderar na era da inteligência artificial é, antes de tudo, um exercício de consciência ampliada. Não se trata apenas de entender onde e como aplicar algoritmos — isso, em breve, será um conhecimento comum. O verdadeiro diferencial estará em compreender o que significa ser humano em um contexto cada vez mais mediado por sistemas inteligentes.

 

Esse futuro cocriado com a IA exige um novo tipo de liderança — mais sensível do que heroica, mais interdependente do que individualista. Líderes do século XXI não podem mais se apoiar exclusivamente em seus repertórios técnicos ou em experiências passadas. Precisam cultivar uma escuta radical, uma ética ativa e uma visão sistêmica que abrace a complexidade como matéria-prima da inovação.

 

Aqueles que se dispuserem a caminhar por essa trilha — por vezes incerta, sempre transformadora — não estarão apenas garantindo a competitividade de suas organizações. Estarão ajudando a moldar uma nova era em que progresso tecnológico e desenvolvimento humano se entrelaçam de forma construtiva e responsável. Essa é a verdadeira liderança exigida por um século marcado por inflexões profundas: uma liderança que se compromete não apenas com os resultados, mas com os significados. E esse, sem dúvida, é o tipo de liderança que o século XXI exige.

REFERÊNCIAS

 

Hoque, F., Davenport, T. H., & Nelson, E. (2025). “Why AI Demands a New Breed of Leaders”. MIT Sloan Management Review. Disponível em: https://sloanreview.mit.edu/article/why-ai-demands-a-new-breed-of-leaders/

 

 

Davenport, T. H.; Miller, S.Working with AI: Real Stories of Human-Machine Collaboration. The MIT Press, 2022.

 

Zillow Quits Home-Flipping Business, Cites Inability to Forecast Prices. The Wall Street Journal, 2 nov. 2021. Disponível em: https://www.wsj.com/economy/housing/zillow-quits-home-flipping-business-cites-inability-to-forecast-prices-11635883500. Acesso em: 23 maio 2025.

 

Weick, K. E. Sensemaking in Organizations. Thousand Oaks: SAGE Publications, 1995.

 

Accelerating Sustainability with AI: A Playbook. Microsoft, 2023. Disponível em: https://blogs.microsoft.com/on-the-issues/2023/11/16/accelerating-sustainability-ai-playbook/. Acesso em: 23 maio 2025.The Official Microsoft Blog+2The Official Microsoft Blog+2The Official Microsoft Blog+2

 

 

Microsoft New Future of Work Report 2023. Microsoft Research, 2023. Disponível em: https://www.microsoft.com/en-us/research/publication/microsoft-new-future-of-work-report-2023/. Acesso em: 23 maio 2025

 

McGrath, R. G. Seeing Around Corners: How to Spot Inflection Points in Business Before They Happen. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2019.

The Partnership on AI: About Us. Partnership on AI, 2025. Disponível em: https://www.partnershiponai.org/about/. Acesso em: 23 maio 2025.

 

About AI for Good. ITU – International Telecommunication Union, 2025. Disponível em: https://aiforgood.itu.int/. Acesso em: 23 maio 2025.

Reclaiming Conversation: The Power of Talk in a Digital Age. Penguin Books, 2015.

 

Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence. UNESCO, 2021. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000381137. Acesso em: 23 maio 2025.

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Rafael Balan Zappia, PhD, MBA

Especialista, palestrante, facilitador e consultor em temas relacionados à Inovação, Liderança, Estratégia, Execução, Criatividade, Design Thinking e Gestão da Complexidade.

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